PLANEJAMENTOS DIÁRIOS: O QUE FALAM E ESCREVEM PROFESSORAS ALFABETIZADORAS

Maria Lúcia de Souza e Mello (PUC-Rio)

 

 

 

 

Justificativa/Introdução

Durante quase trinta anos, trabalhando em educação pública no Município do Rio de Janeiro, tive a oportunidade de vivenciar situações variadas em diferentes funções, ora trabalhando como professora ora como supervisora educacional ora como Chefe do Serviço de Acompanhamento Educacional. A essas, outras experiências se somaram, momentos ricos onde o desafio constante era exercer uma prática pedagógica, pensando na singularidade dos alunos, dos professores, dos funcionários, com quem compartilhava a vida cotidiana da escola, sem perder de vista a dimensão de totalidade da prática educativa, sempre em busca de uma escola pública que contribua para a construção se uma sociedade democrática e que visa a justiça social.

Como professora, recordo os momentos em que planejávamos as nossas aulas, encontros promovidos pela escola ou reuniões para planejamento, como eram chamados. Tempos depois, quando já era supervisora, muitos encontros estiveram sob a minha coordenação. Nesses espaços-tempos, trocas eram realizadas e diversas vezes, ao final do encontro, tínhamos somente um plano registrado. Seria essa prática recomendável? Possibilitaria o atendimento às necessidades e aos interesses de cada uma das turmas e professoras? Vinte anos passados, em outro espaço, outro grupo, situação semelhante, a reunião para planejamento reacendeu minhas dúvidas, e, como Alice (no País das Maravilhas), sentia-me em um impasse. Qual o caminho a seguir? Dependia, naturalmente, de onde quisesse chegar, mas... sempre se chega a alguma parte... Porém, se pretendo auxiliar na construção de uma escola pública de qualidade, que caminhos devo escolher? Que planos traçar? Os caminhos são muitos, há uma pluralidade deles, muitos desconhecidos e a escolha sempre representa um risco. Refletir sobre essas questões me inquietava. Instigada, então, por aspectos que envolvem o planejamento diário, desenvolvi esse estudo.

Esse trabalho estuda o que falam sobre planejamentos diários e o que registram em seus planos as professoras alfabetizadoras em uma escola pública do Município do Rio de Janeiro, iniciando uma investigação em que o planejamento diário é pensado como um gênero discursivo em construção. Inicialmente procura-se recuperar algumas discussões presentes na área do planejamento escolar e também refletir sobre gêneros do discurso, ancorada em estudos de Mikhail Bakhtin. Em seguida, é analisado o material colhido no campo em confronto com o referencial teórico-metodológico. Concluo, então, esse estudo com a idéia bakhtiniana do eterno inacabamento, pretendendo estabelecer um diálogo com seus leitores, diálogo esse que possibilitará recriações sucessivas do texto nas e pelas diversas leituras que suscitará.

Planejamento

As discussões sobre planejamento educacional têm se adequado às questões "como", "com que meios" e "a partir de qual enfoque", e não às questões "quem planeja" e "para que se planeja". No que se refere a uma perspectiva macro, o planejamento tem sido predominantemente uma forma de intervenção do Estado em educação, com o objetivo de implantação de alguma política educacional. Seja sob a "pedagogia tecnicista" dos anos setenta seja sob a "pedagogia da qualidade total", que gradativamente se instalou nos anos noventa, percebe-se o planejamento como instrumento que coloca a educação a serviço do status quo, sendo considerado como um exercício exclusivamente técnico e de técnicos, estando normalmente fora do alcance dos professores-educadores. A pedagogia tecnicista pretendeu que a educação pudesse se organizar de forma racional, como se fosse possível eliminar a subjetividade do processo educacional. Os programas de qualidade total dos anos noventa tinham como metas, segundo Drügg e Ortiz (1994:43), "o planejamento, organização e controle, desenvolvendo a capacidade da empresa estabelecer planos para atingir os objetivos propostos". Quanto à educação, esses programas, gradativamente implantados em algumas escolas, vêem o plano escolar como registro das estratégias de ação. Cabe à educação, em uma e outra pedagogias, cumprir a função de formar indivíduos eficientes, produtivos, que contribuam para o aumento da produtividade da sociedade.

Porém, há alguns anos, o planejamento vem exercendo uma função secundária no processo de ensino e aprendizagem. As críticas à pedagogia tecnicista com a intenção de superá-la, levaram à negação de suas propostas. Também a interpretação dada à educação centrada na iniciativa e necessidade do aluno levou muitos professores a acreditarem que as propostas de ensino emergiam, somente, do interesse imediato demonstrado pelo aluno. A prática do planejamento vista como tarefa burocrática, pouco contribuindo para a ação diária desenvolvida em sala de aula, pode ter contribuído para a sua desvalorização e o seu desuso.

No entanto, penso no planejamento não apenas como uma técnica, como instrumento para organizar a ação do professor, mas também o abordo enquanto prática social histórica. Tomo como ponto de partida a idéia de que todo planejamento é uma práxis, consistindo numa ação orientada por um pensamento transformador da realidade. Compreendo ainda, numa práxis baseada em Vygotsky (1989), a possível e necessária intervenção do professor na Zona de Desenvolvimento Proximal, possibilitando ao aluno realizar, independentemente amanhã, o que realiza hoje com a ajuda do professor ou de outra pessoa. Para exercer a função mediadora entre os alunos e os conteúdos historicamente construídos faz-se necessário o professor organizar as ações a serem propostas, pois a aprendizagem não ocorrerá, na maioria das vezes, apenas por encontros casuais entre alunos e conteúdos. O planejamento, isto é, o instrumento para organização das propostas de ação de cada um dos professores traduzir-se-á, então, nos objetivos e conteúdos priorizados e na opção pela forma como o professor avaliará seus alunos. O planejamento passa a ser visto, então, como forma de relação dialética entre pensamento e ação e assim, o documento escrito constitui-se em uma síntese das conclusões obtidas durante esse processo de reflexão, sendo utilizado pela professora para consultar durante o trabalho diário desenvolvido com a turma, tornando sua intervenção não só pedagógica como também política, consciente. É importante destacar que entre a intenção do planejamento, a situação ideal, e a real, vivida na prática da sala de aula, existe um espaço-tempo, mas ainda assim o planejamento das atividades de ensino representa as hipóteses iniciais do trabalho que orientam a intenção educativa.

 

 

Planejamento diário como prática educacional e como gênero discursivo

As professoras participantes da pesquisa que deu origem a esse artigo, ao falarem sobre planejamento, exprimiram e compartilharam suas experiências, dando indicações do dia-a-dia de suas práticas docentes. E a prática educativa constrói-se na comunicação humana e se estabelece pela linguagem, que nesse estudo é pensada não somente como meio, como instrumento que transmite ao destinatário alguma mensagem, mas como expressão de experiências, como forma de interação humana. Baseio-me, então, nas idéias do pensador russo Mikhail Bakhtin, para quem a relação dialógica é pensada como fenômeno social de interação verbal. Ao centrar sua concepção de linguagem no diálogo, Bakhtin supõe o outro na interação verbal, para ele o dialogismo pressupõe a complementaridade de visões.

Bakhtin estabelece as relações entre língua e vida, esclarecendo que "a língua penetra na vida através dos enunciados que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua" (1992:282). Assim, a utilização da língua se dá sempre sob a forma de enunciados orais ou escritos "concretos e únicos" utilizados pelos participantes em cada uma das atividades humanas. Considera ainda que "cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados" (1992:279) – os gêneros do discurso, como denomina, com características temáticas, composicionais e estilísticas próprias. Assim, se por um lado Bakhtin destaca a individualidade do enunciado, por outro reconhece os gêneros como enunciados "relativamente estáveis" utilizados em diferentes situações de comunicação.

Por sua vez, a existência dos gêneros relacionada às variadas situações de comunicação possibilita que existam em número e diversidade bastante grandes e sempre com a possibilidade de surgimento de novos gêneros discursivos, em função das novas situações de interação humana e também porque "cada esfera da atividade humana comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa" (Bakhtin; 1992:279).

Para entender as questões relacionadas ao planejamento em educação, como gênero discursivo é necessário contextualizar sua inserção na dimensão sócio-político-econômico-cultural. Segundo Ferreira (1987), foi a partir do desenvolvimento comercial e industrial ocorrido com o advento do capitalismo que se iniciou a

preocupação em planejar na área de economia, expandindo-se, em seguida, aos diversos campos do conhecimento. O planejamento passou, então, a ser uma preocupação social, estendendo-se a áreas como educação, saúde, moradia etc. Assim, o planejamento em educação pressupõe sempre, mesmo que inconsciente ou implicitamente, uma intencionalidade, que se presentifica na ação pedagógica.

No dia-a-dia estamos sempre agindo e fazendo opções, comenta o autor. Agimos para sobreviver, para mudança ou permanência das coisas a nossa volta, permanência aparente porque a realidade está sempre em movimento, mesmo que, aparentemente, por um certo tempo, nada se altere. Como estamos sempre interagindo socialmente, a ação exercida é influenciada pelo contexto em que atuamos, como também influi sobre esse mesmo contexto. "Nossa ação corresponde de fato a uma intervenção nessa realidade, mas é uma de mil intervenções que se combinam, a realidade se modificando não segundo unicamente nossa ação, mas segundo a resultante de todas essas ações e forças naturais" (Ferreira, 1987:134). Assim, a ação pode ser intencional, planejada ou improvisada.

O planejamento ocorre quando tenho um objetivo em vista e para alcançá-lo, então, planejo e não improviso. Além do planejamento inicial, para alcançar as metas previstas é necessário o acompanhamento cuidadoso durante a realização da ação. É preciso estar sempre avaliando e fazendo os ajustes necessários, assim como é indispensável uma análise crítica ao final da ação prevista.

Em educação, devido a diversas situações em que o gênero planejamento é produzido, pode ser subdividido e classificado em educacional, curricular e de ensino, esse último, segundo alguns autores, envolve planejamento de curso, de unidade e de aula ou diário. Essa organização não é fixa, apresentando marcas de individualidade, conforme as teorias propostas pelos diferentes autores que tratam do assunto, mas guardam entre si uma relativa estabilidade. Já no meio escolar quando se fala em planejamento, normalmente ele é associado ao processo de definir os objetivos, os conteúdos programáticos, os procedimentos de ensino, os recursos didáticos, as normas da avaliação da aprendizagem e a bibliografia a ser consultada.

Alerto, no entanto, que, ao estudar as características comuns do gênero discursivo, procurando aproximá-las, a intenção não é superar as diferenças, organizando-as em categorias uniformizantes, ao contrário, pretende-se "apreender nos movimentos dos usos da linguagem cotidiana a própria diversidade que torna a língua viva, refletindo de uma maneira imediata, atenta e flexível, todas as transformações da vida social" (Castro e Jobim e Souza; 1997:6).

A escola e o processo de pesquisa

Tenho como objetivo, então, nesse artigo, estudar os textos falados e escritos sobre planejamento diário, como representativos de um gênero discursivo. E, embora possamos considerá-lo como subgênero do "planejamento", uma vez que são reproduzidos, ao menos em parte, os conteúdos temáticos do discurso a ele atribuído, traz, no entanto, peculiaridades relacionadas à situação em que é produzido. Busca-se, também, nesse momento, o que pode ser compreendido como marcas do estilo do gênero e que são comuns ao conjunto das professoras participantes da pesquisa.

Como corpus empírico da pesquisa, os principais são os registros dos planejamentos e os textos transcritos das entrevistas. A opção pelo estudo dos textos falados e escritos, produzidos pelas professoras se justifica à medida que o objeto de estudo das Ciências Humanas e, portanto da Educação é, segundo Jobim e Souza (1994:25) "não só o homem, mas o homem como produtor de textos, pois sua especificidade é estar sempre se expressando, sempre criando textos. O ato humano é um texto em potencial". E o processo da pesquisa foi sendo construído na relação com as professoras, num movimento constante de aproximação e afastamento. Compreender e interpretar suas ações exigia a exotopia, o distanciamento necessário que me permitisse perceber aquilo que elas não podiam ver, do lugar por elas ocupado. Como pesquisadora, então, assumi a posição de leitora, interlocutora, contempladora do cotidiano escolar, no sentido bakhtiniano desses termos.

A pesquisa de campo foi realizada num CIEP do Município do Rio de Janeiro, que atende 549 alunos, distribuídos em vinte turmas, desde a educação infantil até a quarta série. Está localizado num bairro de classe média da Ilha do Governador e é freqüentado por crianças que moram em favelas e bairros populares, que se localizam próximo à escola. Participaram da pesquisa nove professoras (na escola não há professor), que se propuseram a colaborar, sendo três regentes de turma de educação infantil, três de classe de alfabetização e três de primeira série. Dentre elas, quatro permaneciam com a turma pela manhã e à tarde, por terem duas matrículas ou por trabalharem em regime de dupla regência. O CIEP constitui-se numa escola de horário integral para os alunos, porém para os professores esse horário é facultativo, dificultando o desenvolvimento do trabalho pedagógico, uma vez que nem sempre é possível às professoras de uma mesma turma se encontrarem.

A escola encontra-se, de maneira geral, bem conservada. O patrimônio da escola, embora com esforço, é mantido pela direção. No entanto, ela não está desvinculada das orientações político-governamentais para a educação, percebendo-se grande número de alunos por turma; baixos salários recebidos pelos professores, com o conseqüente aumento de suas jornadas de trabalho, tornando o tempo curto, como disseram várias professoras, para se dedicarem às tarefas e estudos necessários à prática educativa, conciliando-as com seus outros afazeres.

Planejamento: o que falam as professoras

Ao estudar os textos falados produzidos pelas professoras busquei identificar a diversidade de temas presentes nos seus discursos e que remetem ao gênero planejamento, possibilitando, assim, perceber a ocorrência de determinadas falas que se aproximam e, de alguma forma, constituem seu conteúdo temático, estudos esses que permitem considerar o planejamento como um gênero do discurso pelo tipo relativamente estável dos seus enunciados (Bakhtin;1992:279).

Planejamento: roteiro, caminho a seguir

Segundo as professoras, planejar consiste em ter um roteiro, um caminho para atingir as metas previstas: "Eu acho que é mais ou menos isso, é ter uma linha para me guiar, para me orientar, o que me oriente naquela direção aonde que eu quero ir", diz Rita. Mas Luiza alerta para o fato de que os caminhos são vários, devemos escolher entre as diversas possibilidades e nada está pronto, tudo vai sendo construído durante o caminhar.

Planejamento: concretização de objetivos

Quando temos um objetivo em vista, uma meta a alcançar, planejamos nossas ações, dizem Rita, Andrea e Sheila. Mas, segundo Alice "a gente priorizou quais seriam os objetivos, mas na hora de você planejar a própria atividade, o assunto em si, de você trabalhar aquele determinado conceito, as pessoas não conseguem relacionar muito uma coisa com a outra". Então, embora pensem nos objetivos a atingir nem sempre relacionam a atividade, a ação exercida, com as metas previstas. Márcia também reflete sobre o assunto: "você me fez pensar agora, porque se a gente planeja querendo alcançar alguma coisa, você tem que saber onde quer chegar, e se você não traçar esse objetivo você não tem para onde ir". Em sua fala, a professora também comenta que os objetivos não têm sido pensados, o que é confirmado por Suely. Mas, como agir conscientemente quando não se pensa no que se pretende alcançar?

Planejamento flexívelXimproviso

As professoras foram unânimes ao falarem sobre a importância de planejar, mas a realidade é o espaço de contradições e está sempre em movimento de mudança, de transformação e a contradição se torna presente quando, no discurso, Márcia comenta sobre o improviso no seu trabalho: "Eu acho que quando você trabalha em conjunto fica mais produtivo embora eu tenha essas falhas porque eu não consigo fazer uma coisa muito elaborada, o tempo é curto e eu resolvo o que vou fazer quase que aqui na hora mesmo."

Alice e Luiza também falam sobre o improviso em suas ações, assim como Márcia, relacionando-o com o tempo disponível para planejar as tarefas diárias. Considerando tantas demandas simultâneas (vários empregos, tarefas domésticas e outras) e que o "tempo é curto", como conciliar o estudo, a leitura? Percebemos, então, que há momentos de planejamento e outros de improviso. Se pensamos no planejamento não somente como uma técnica, mas também como uma ação orientada por um pensamento transformador da realidade, quanto pode haver de improviso nas tarefas diárias das professoras?

Outra questão se apresenta: como adequar o planejamento à realidade da sala de aula? "Eu estou fazendo de um jeito agora que eu não sei se vai dar certo, mas eu estou agora procurando mais uma linguagem deles. O coleguinha do lado, às vezes, sabe falar melhor com ele do que você...", reflete Andréa. Já Suely, Alice e Luiza dizem deixar em aberto seus procedimentos diários, agindo de acordo com as circunstâncias que se apresentam na sala de aula. "... a coisa de você programar antes, eu não consigo porque eu não sei por onde a turma vai caminhar.", comenta Alice. Suas falas provocam reflexões. Estariam sendo flexíveis ou seria a falta de planejamento responsável pelo improviso? Flexibilizar a ação consiste em não cristalizar caminhos. Assim, quando planejam, escolhem um entre os diversos roteiros possíveis, e planejam para organizar as ações, tendo em vista os objetivos a alcançar.Como diz Luiza: "Eu me organizo a partir dos objetivos, do que eu quero, sem seqüência. Quer dizer, tem até uma seqüência de complexidade, mas que não é rígida". No entanto, depois de começada a ação, é necessário estar atenta à solução dos problemas que surjam, à correção de decisões que se mostraram erradas ou às situações inesperadas, replanejando constantemente. "É importante estar consciente de que haverá a necessidade de adaptar nossos planos, flexibilizar, quando interagimos com os alunos", comenta Márcia.

Planejar-a-ação e replanejar-a-ação

E se o plano organiza suas ações, planejam para iniciar o trabalho, dizem as professoras. Comentam, também, que é necessário refletir sobre a ação enquanto ela está se desenrolando. Esse movimento de ação, reflexão e replanejamento para retornar à ação, exige uma constante auto-avaliação, alerta Andrea. Algumas professoras comentaram a importância da avaliação para que se procedam aos ajustes necessários no planejamento inicial, à medida que a interação com os alunos for ocorrendo. Mas, segundo Márcia, nem sempre isso acontece. Conforme a reflexão da professora, "a avaliação precisa ser um instrumento para o aperfeiçoamento da prática exercida, não só de avaliação do aluno."

Planejamento: espaço coletivo de trocas

As reuniões de planejamento por série, que ocorrem na escola, são espaço e tempo para construção e ampliação de conhecimentos, conforme os comentários de Sheila e confirmados por Alice: "o planejamento no meu grupo é um organizar de idéias, um discutir, o amadurecimento, a troca mesmo." As professoras estabelecem nesses encontros relações dialógicas, partilham suas experiências, abrem-se às experiências das outras. Talvez por isso busquem espaços coletivos na escola para discussão, tornando o ato de ensinar tarefa coletiva e solidária.

Em diferentes situações, ao falarem sobre planejamento, as professoras mostraram posições divergentes, às vezes contrárias. O conflito torna explícita a contradição. A possibilidade de a escola organizar encontros entre as professoras, confrontando posições diferentes, contribuiria para o surgimento de uma nova posição, ainda que provisória, porque o nosso conhecimento está sempre em processo de construção. Suely propõe: "o tipo de trabalho aqui é totalmente diferente daquele que eu fazia antes, então eu acho importante quando eu encontro com elas" (colegas da série). Esses momentos de discussão, então, podem ser utilizados para a formação ou atualização das professoras em serviço, conforme avalia Rita: "noventa e dois foi um ano superlegal. Aqueles planejamentos, aqueles treinamentos eram excelentes, tipo assim, a gente conseguia fazer encontros que não eram nem só para uma série, lembra? Acho que foi a época que foi mais... para mim foi a época que eu aprendi". O planejamento assim se constituiria numa práxis à medida que se tornasse uma ação orientada por um pensamento transformador da realidade.

Elencando palavras-chave como essência dos temas que foram abordados e se destacaram nas falas das professoras temos: roteiro, caminho, objetivo, improviso, flexibilização, avaliação, replanejamento, realidade da sala de aula, discussão coletiva e troca. Observa-se nos seus discursos que reproduzem alguns dos conteúdos temáticos identificados como pertencendo ao gênero de discurso "planejamento", trazendo, também, as peculiaridades relacionadas às situações em que são produzidos os planejamentos diários. Assim, Planejamento: roteiro, caminho a seguir esclareceu o que é planejar para as professoras. Já em Planejamento: concretização de objetivos, tivemos indicações de para que planejam. E quando planejam? Encontramos respostas em Planejar-a-ação e Replanejar-a-ação. Como adequar o planejamento à realidade de sala de aula? Muitas reflexões foram provocadas por Planejamento flexívelXimproviso e Planejamento: espaço coletivo de troca fez pensar sobre as possibilidades de um espaço-tempo para construção e ampliação dos conhecimentos das professoras.

Quanto ao estilo, os textos falados pelas professoras apresentam-se predominantemente como narrativa, em forma de diálogo, naturalmente pela situação de entrevista em que foram produzidos, mas há momentos, também, em que descrevem situações vividas no dia-a-dia de sala de aula e outros em que argumentam em favor das opiniões expressas.

 

 

Planejamento: o que escrevem as professoras ou o que os planejamentos falam...

Vimos, através das falas das professoras, que, em sua maioria, valorizam o planejamento e os momentos em que se reúnem para fazê-lo. Mas, que tipo de planejamento organizam? O que registram? Na escola observada pude perceber situações diferenciadas.

Das três professoras de turmas de educação infantil, uma não fazia nenhum tipo de registro, as outras duas disseram que registravam as atividades após realizá-las, no entanto, não o fizeram com regularidade até o final do ano letivo. As três professoras das classes de alfabetização se organizavam de forma semelhante. As professoras de primeira série trocavam em conjunto idéias sobre o planejamento, mas o faziam em suas casas. Duas planejavam diariamente e registravam, a terceira comentou que registrava depois. E qual a importância do registro se, conforme algumas professoras, está tudo aqui (na cabeça)? "Planejar é importante porque te leva a uma reflexão. (...) É um momento que você pára para pensar na turma e no seu trabalho. Quer dizer, é importante por isso, pela reflexão, e porque você acaba fazendo uma avaliação: será que posso fazer isso agora? Planejar, então, segundo a própria professora, provoca repensar, re-significar a prática exercida.

Observei que há formas diferentes de registo: diário, semanal, e, embora comentem em seus discursos a importância de traçar objetivos para "saber onde querem chegar", não constam deles os objetivos, as intenções das professoras ao proporem determinados conteúdos ou atividades para seus alunos. Não percebi, também, qualquer referência aos critérios de avaliação adotados nas diferentes turmas, mesmo reconhecendo a avaliação como um "instrumento para o aperfeiçoamento da prática exercida". Os registros das professoras apresentavam-se em tópicos. Mesmo as professoras que registravam depois de realizada a atividade não o faziam em forma de relatório e encontrei somente alguns comentários sobre o cotidiano de suas salas de aula. Sua escrita era fragmentada e descontínua. Não se percebe preocupação com procedimentos de textualidade, mesmo porque neles é registrado um elenco de atividades a serem propostas aos alunos.

Os suportes onde são registrados são diversificados: papel almaço; caderno espiral, de tamanho grande com capa dura; caderno de tamanho pequeno e capa mole; folhas soltas, impressas em mimeógrafo, apresentando um quadro semanal de forma

esquemática, mas para ser preenchido diariamente. Os cadernos não eram encapados e apresentavam na primeira página os dados da professora e da turma. Os que eram registrados em papel almaço ou folhas mimeografadas ficavam guardados em pasta de papelão. As professoras organizavam-se de maneira semelhante e seus registros seguiam a cronologia dos dias da semana. Só um era preenchido a caneta, os demais eram a lápis, o que possibilitaria o uso da borracha, apagando possíveis marcas de alteração naquilo que era planejado.

Conforme comentei, as professoras usavam diferentes formas para organizar seus planos, e não há mesmo a correta ou a melhor. O conteúdo engendra a forma e a forma, por sua vez, também altera o conteúdo, conteúdo e forma se fundem, no texto, estabelecendo uma relação dialética entre ambos. "A forma em si e por si não necessita ser necessariamente agradável (...), o que ela precisa ser é uma avaliação convincente do conteúdo" (Bakhtin; 1976:22). A linguagem verbal escrita, então, dá forma aos planejamentos estudados, refletindo, também, o conteúdo das professoras, suas concepções sobre o objeto do conhecimento, sobre os processos de ensino-aprendizagem, uma vez que o autor está presente no encontro da forma com o conteúdo. Mas, se a forma se inter-relaciona com o conteúdo, devemos então pensar sobre o conteúdo temático a que a forma dos planejamentos nos remeteu.

Nos registros diários das professoras foram encontradas atividades tais como:

1. "Leitura:

Eva vê a vovó. Vovó dá a uva à Eva.

Ivo vê o vovô. Vovô dá o avião ao Ivo."

2. "Eva vê a vovó. Vovó dá uma à Eva.

A uva é da ................

Vovó deu a ............. à Eva."

3. "Edu vai a aula de violão.

A aula é de dia na vila.

Edu vai de meias de lã.

4. "Use m ou n:

sa___ba te___pero de___tista

o___ça bo___beiro li___peza"

5. "Use a cedilha:

  1. Tenho um lenco na cabeca.
  2. A carroca é do cacula."

Também aparecem, como propostas para os alunos, os livros didáticos, destacando as páginas que serão utilizadas:

"Livro de português e atividades no mesmo, páginas 95, 96"

"Língua Portuguesa – Livro Leiturinhas" – Fixação da sílaba PI"

"Exploração do livro de Ciências"

"Estudos Sociais, página 11"

Segundo Bakhtin, "os enunciados e o tipo a que pertencem, ou seja, os gêneros do discurso são as correias de transmissão que levam da história da sociedade à história da língua" (1992:285). Assim, nenhuma mudança penetra no sistema da língua sem ter sido testada, utilizada, por longo período, passando pelo "acabamento do gênero". Os enunciados e as formas que assume o discurso concreto, real, entre professoras e alunos, são como elos entre sociedade, língua e cultura. Dessa forma, a apreensão e interpretação dos gêneros discursivos presentes na vida social faz entender a linguagem como mediadora dos movimentos da história e das transformações culturais.

Ao estudar, então, as propostas escritas nos planejamentos diários, percebem-se os registros de atividades, que, em sua maioria, pressupõem uma concepção de linguagem como instrumento, como técnica a ser aprendida e proposta para o seu ensino, que foram questionadas por Rui Barbosa em 1883, por M. Bakhtin, no início desse século, e por outros autores mais recentes. Por que essa demora na escuta? Bakhtin (1995:41) afirma que "a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam". Assim, perceber poucas alterações nas propostas em relação aos estudos anteriores indicaria uma tendência maior à permanência do que à mudança de situações instituídas? Como alterar as práticas pedagógicas, com o objetivo de superar as deficiências atuais da educação, que se evidenciam nos índices de evasão e de repetência, principalmente nas séries iniciais?

Embora esteja, ainda, trabalhando com um número pequeno de planejamentos, uma vez que a maioria das professoras não planeja, e não havendo, portanto, intenção de generalizar, observa-se que os registros estudados apresentam relação de atividades semelhantes às encontradas nas cartilhas e a indicação dos livros didáticos a serem utilizados.

Ainda algumas considerações

As Ciências Humanas e Sociais tratam de sujeitos que têm voz e que falam, a partir do lugar que ocupam na sociedade. Assim, os textos produzidos (falados ou escritos) estão situados em contextos concretos que devem ser considerados para que sejam compreendidos. Por sua vez, também quem ouve ou lê os discursos o faz de um determinado lugar e os sentidos produzidos resultam dessa interrelação dinâmica. Portanto, ao considerar o estudo do planejamento como um gênero do discurso não se podem ignorar as condições de produção do mesmo.

Nesse estudo, observou-se de maneira geral que, embora o discurso falado reproduzisse os temas do gênero estudado, a prática de planejar tem se pautado com maior freqüência pela ausência, por um espaço vazio, e não parece se constituir em objeto discursivo de preocupação, investigação e debate. Parece mesmo que ele não faz parte do trabalho docente. No entanto, pergunta-se: há um momento previsto, dentro da carga horária de trabalho das professoras, destinado à sua realização? Segundo as professoras da escola, não há esse espaço e a falta de tempo associada à necessidade de atender a diferentes demandas (outros trabalhos, devido ao baixo salário; afazeres pessoais etc.) as leva a justificar o improviso freqüente no trabalho desenvolvido com os alunos. É importante destacar a existência de improviso decorrente da flexibilidade imposta ao planejamento no momento de interação com os alunos. No entanto, o improviso freqüente, como mencionado por algumas professoras, pressupõe a falta de propostas organizadas, a falta de planejamento, uma vez que várias o deixam em aberto e agem de acordo com as circunstâncias que se apresentam na sala de aula.

Outra questão a ser pensada diz respeito ao horário proposto pelas professoras pra trocas coletivas, que poderia ser pensado como de formação em serviço. Essas ocasiões deveriam possibilitar às professoras uma releitura daquilo que propõem como tarefas aos alunos. As trocas coletivas, as análises retrospectivas de situações vividas na prática pedagógica podem se tornar fator de mudança, se for estabelecido um conflito cognitivo que provoque uma tomada de consciência pela professora das suas concepções sobre o processo ensino-aprendizagem, que se revelam ao observador na relação estabelecida entre a forma e o conteúdo, nos planejamentos por elas elaborados.

De acordo com o que está registrado, as atividades propostas aos alunos apresentam-se desvinculadas da realidade social. No entanto, conhecendo a realidade com que vamos trabalhar nossa ação não será intuitiva, mas consciente, e será maior a possibilidade de que os objetivos a atingir emerjam bem definidos. É importante ressaltar que basear o planejamento na realidade do aluno não significa reduzir o conhecimento a ser por ele aprendido. A práxis, assim, implica um fazer e refazer constantes, cujo objetivo é a mudança da sociedade. O plano, então, organiza a ação da professora e deve ir se modificando à medida que a interação com os alunos for ocorrendo.

Pode-se, então, pensar que, se os contextos em que são produzidos os planejamentos, as condições para a sua produção, fossem outros, teríamos uma outra qualidade de planejamento?

Outra questão que provocou reflexões diz respeito à relação estabelecida entre o discurso produzido, no caso o falado, e o "auditório social" a que se dirige. Todo enunciado é elaborado em função do ouvinte que tem um papel ativo na comunicação, e o falante sempre leva em conta o destinatário: o grau de informação que ele tem da situação, seus conhecimentos especializados na área, suas opiniões, suas condições, suas simpatias, antipatias etc. Esses fatores influenciam o locutor na elaboração do gênero do seu discurso e nesse processo estão presentes palavras, oposições, confrontos de poder, desejos e temores. Assim, a entrevista realizada poderia ter demarcado o meu lugar de entrevistadora, com uma certa ascendência sobre as entrevistadas, o que poderia levá-las a falar, não necessariamente o vivido cotidianamente mas o que imaginavam ser o correto, o esperado, o que aproximaria o tema de seus discursos do gênero estudado. No entanto, nas diferentes situações da escola, em que estive presente, pude observar as aproximações entre o falado e o vivido, em relação ao planejamento.

Quanto aos planejamentos escritos, eles têm, com mais freqüência, se apresentado como uma listagem de atividades, com a forma encontrada nos livros didáticos e cartilhas, não constando deles objetivos nem critérios de avaliação.

Esse estudo realizado aponta para a importância do planejamento...

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

 

BAKHTIN, Mikhail (VOLOOSHINOV, V. N.). "Discourse in life and discourse in art: concerning sociological poetics". In: Freudianism: a marxist critique. New York. Adacemic Press. 1976. Tradução de Cristóvão Tezza, para uso didático. Mimeo.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo. Livraria Martins Fontes Editora Ltda. 1992.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo. Hucitec. 1995.

CARROL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. São Paulo. Editora Ática. 1997.

CASTRO, LUCIA R e JOBIM E SOUZA, Solange. Pesquisando com crianças: subjetividade infantil, dialogismo e gênero discursivo. Mimeo. Rio de Janeiro. PUC-Rio. 1997.

DRÜGG, Katia Issa e ORTIZ, Dayse Domene. O Desafio da Educação: A Qualidade Total. São Paulo. Makron Books. 1994.

FERREIRA, Francisco Whitaker. Planejamento Sim e Não. Rio de Janeiro. Editora Paz e Terra. 1987.

JOBIM E SOUZA, Solange. Infância e linguagem. São Paulo. Papirus Editora. 1994.

VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. São Paulo. Editora Martins Fontes. 1989.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PLANEJAMENTO COLETIVO DA CLASSE DE ALFABETIZAÇÃO

PLANEJAMENTO DIÁRIO PROFESSORA A

 

PLANEJAMENTO DIÁRIO PROFESSORA A

PLANEJAMENTO DIÁRIO PROFESSORA B

REGISTRADO APÓS A REALIZAÇÃO DAS ATIVIDADES

REGISTRADO APÓS A REALIZAÇÃO DAS ATIVIDADES

REGISTRADO APÓS A REALIZAÇÃO DAS ATIVIDADES