EDUCAÇÃO COM O CORPO TECNOLOGIZADO

Vicente Eudes Veras da Silva (UNESA)

 

Ninguém determinou até hoje o que o corpo pode fazer.

Spinoza

Estamos acostumados a ver as coisas de uma determinada maneira, a qual chamamos de paradigma. Quando vemos as coisas através de um paradigma, torna-se difícil vê-las de outra maneira. É muito difícil abordarmos um problema de modo diferente do qual estamos acostumados a abordar. Mas, quando o fazemos, torna-se fácil a compreensão do novo paradigma. Devemos, portanto, ter nossas mentes abertas a novas idéias, tentar ver as coisas sob outro prisma.

Para conhecer, precisamos estar inseridos em um novo paradigma, que pressupõe educar sempre dentro de uma visão de totalidade onde o conhecimento não é fragmentado mas interdependente e interligado. Um conhecimento que expressa a unidade cérebro-mente-corpo. Podemos observar diferenças de ênfase, de caminhos para acesso ao conhecimento, de sua expressão, mas não estão isolados.

Para escrever sobre a educação com um corpo tecnológico, gostaria de partir de um problema clássico da filosofia moderna que é o união da alma e do corpo. No século XVII, , René Descartes enunciou estar a mente assentada na glândula pineal e que, através dela, a "alma" ( uma espécie de etéreo consciente superior, mais tarde representada, metaforicamente, por um homúnculo ( FOTO 1) - símbolo herdado dos teólogos medievais), se comunicava com o soma. Assim, "alma" e mente ( e, por inferência, a consciência) se dissociavam do cérebro e do corpo. Estava criado o dualismo. A distinção cartesiana de alma e corpo, remetendo o estudo da primeira entidade para a filosofia e psicologia e o da segunda para a mecânica, levantou um problema que tem perdurado séculos e que ainda hoje é um tema da filosofia. Na visão tradicional, aquela do ‘espírito objetivo absoluto’, a razão é abstrata e desvinculada do corpo. A corrente tradicional argumenta que a capacidade para o pensamento significativo e para a razão é abstrata e não necessariamente enraizada no corpo. Na nova visão, a razão possui uma base corporal e o significado depende daquilo que é significativo para os seres vivos e pensantes.

Com o desenvolvimento da ciência e da tecnologia em prol da educação nos deparamos com as possibilidades tecno-cientificas de remoção e transformação das partes do corpo. Distinções metafísicas ultrapassadas de alma-corpo ou mente-cérebro são superadas pela tecnologia que elimina a pele como um lugar significativo. A dicotomização sujeito e objeto é deixada de lado, em favor de uma pesquisa centrada no homem como um todo composto de muitas singularidades.

Segundo Bohadana (2000), "é, portanto, uma tecnologia que, trazendo consigo uma nova linguagem e uma outra cognição, exige diferentes indagações sobre vida e morte, ciência e política, cultura e sociedade ... O novo contexto exige, portanto, a criação de novas formas de educar e reeducar o homem, para lidar não apenas com o aparato tecnológico, pois este foi o projeto da modernidade, mas com as informações advindas ou propiciadas por esta nova tecnologia. Neste sentido, o acelerado desenvolvimento de tecnologias (televisão, computador, telemática) acabam atingindo dimensões do viver e da existência, trazendo importantes mudanças que alteram, inevitavelmente, o próprio estar do homem no mundo".

Para Lévy (1998), esse novo contexto atinge não apenas os setores ligados diretamente às formas de comunicação, mas a todos os aspectos do viver humano pois, "os avanços da biologia e da medicina nos incitam a uma reinvenção de nossa relação com o corpo, com a reprodução, com a doença e com a morte. ... seleção artificial do humano transformado em instrumento pela genética. O desenvolvimento de nanotecnologias capazes de produzir materiais inteligentes em massa, simbióticos microscópicos artificiais de nossos corpos ... Os progressos das próteses cognitivas com base digital transformam nossas capacidades intelectuais tão nitidamente quanto o fariam mutações de nosso patrimônio genético. As novas técnicas de comunicação por mundos virtuais põem em novas bases os problemas do laço social. ... a hominização, o processo de surgimento do gênero humano, não terminou, mas acelera-se de maneira brutal".

Toda essa nova configuração de mundo provoca profundas alterações no cenário pedagógico. O saber passa então a adquirir um novo status de importância, constituindo um dos principais agenciadores das transformações da vida humana. Esse saber tem como característica principal o fato de ser eminentemente coletivo. Lévy (1998) diz que inteligência coletiva "é uma inteligência distribuida por toda parte, incessamente valorizada, coordenada em tempo real".

Dessa forma, os limites que separam mente e corpo tendem a se diluir, impulsionados pela difusão das tecnologias digitais.

Boa parte dos estudos atuais nos campos das ciências da cognição e da neurobiologia apontam para uma complexa dialética entre o afetivo e o cognitivo. Isso traz profundas implicações para o processo ensino-aprendizagem. Segundo Damásio (1996), "a idéia de que o organismo inteiro, e não apenas o corpo ou o cérebro, interage com o meio ambiente é menosprezada com freqüência, se é que se pode dizer que chega a ser considerada. No entanto, quando vemos, ouvimos, tocamos, saboreamos ou cheiramos, o corpo e o cérebro participam na interação com o meio ambiente".

Para Damásio(2000), a emoção e a razão são elementos constitutivos, ou seja, "não há uma oposição entre emoção e racionalidade". Não é uma questão de escolha entre razão, emoção, lógica ou conhecimento. Nós precisamos de tudo.

Essa é também a concepção adotada por Maturana e Varela (1995) que defendem a unidade operacional do ser/fazer humano e para quem "a percepção, o operar do sistema nervoso, a organização do ser vivo e o conhecimento autoconsciente conformam um todo conceitual e operacional indissolúvel. Sejam quais forem as nossas percepções conscientes, ainda que as diferenciamos entre sensoriais ou espirituais (dos sentidos, sensações, emoções, pensamentos, imagens, idéias), elas não operam "sobre" o corpo; eles são o corpo, são expressão da dinâmica estrutural do sistema nervoso em seu presente, operando no espaço das descrições reflexivas (dinâmica social da linguagem)".

Nesse contexto podemos chamar de aprendizagem às transformações que se processam no conjunto dos estados possíveis de um sistema nervoso. Estas por sua vez estando ligadas a sua ontogênese em razão das suas interações com o seu meio. Donde a tradicional definição de aprendizagem como mudança de comportamento observável é insuficiente. Pois uma mudança no comportamento observável é apenas um sintoma tardio e parcial do fenômeno da aprendizagem (o que é visível não expressa mais do que apenas uma pequena parte das transformações ocorridas), já que, o que é observável, não é mais do que um dentre os múltiplos caminhos possíveis na ontogênese de um indivíduo em particular.

A aprendizagem enquanto um processo consiste na transformação, através da experiência, do comportamento de um organismo de uma maneira que, direta ou indiretamente, está ligada à manutenção da sua circularidade básica. Este é um processo histórico no qual cada modo de comportamento constitui a base sobre a qual um novo comportamento se desenvolve. O organismo assim está num processo de mudanças contínuo que é especificado através de uma seqüência interminável de interações com entidades independentes que as selecionam mas não as especificam.

Segundo Maturana, o aprendizado não é um processo de acumulação de representações do ambiente, ele é um processo contínuo de transformação do comportamento através de mudanças sucessivas na capacidade do sistema nervoso para sintetizá-lo. A lembrança não depende de uma retenção indefinida de uma invariante estrutural que representa a entidade (uma idéia, uma imagem ou símbolo), mas da habilidade funcional do sistema para criar, quando certas condições recorrentes são dadas, um comportamento que satisfaça a demanda recorrente, o que o observador classificaria como uma reedição de uma anterior.

Em trabalhos que questionam os limites corporais, Stelarc, tem chocado com os seus espectáculos artísticos na fronteira da tecnologia dando imagem, som e cor a um ser humano ‘ampliado’ nas suas funções ou literalmente ‘conectado’ ou ‘teleoperado’ à distância por outros. Para ele, o corpo humano é uma estrutura evolutiva, cuja arquitetura pode e deve ser ‘redesenhada’ e em que a tecnologia é um ‘apêndice’. Para Stelarc, o corpo humano pode ser encarado como uma arquitetura evolutiva, "o próprio corpo já não pode mais ser assim denominado, melhor será chamá-lo de "homem-planeta", aquele que possa existir em condições variáveis de atmosfera, gravitação e campo eletromagnético",

Entre as suas próteses mais famosas estão um terceiro braço (FOTO 2) e um terçeiro ouvido (FOTO 3) e experiências com máquinas andantes comandadas por movimentos de braço.

A idéia é a do corpo humano se transformar numa interface, num novo ‘media’ necessário à educação. A Net deve deixar de ser apenas um veículo de transmissão de informação para se tornar em um meio de ação física efetiva. A Internet é como um sistema nervoso que pode conectar – literalmente falando – corpos e organismos que são nós dessa rede. Stelarc recusa encarar esta ‘ampliação’ como uma perca do emocional humano, pelo contrário, não se destina a perder o comportamento emocional, mas a ‘ter experiências adicionais’.

Pode soar estranho estas idéias de Stelarc, mas até há pouco tempo, a humanidade era entendida, tanto no plano filosófico quanto no nível do senso comum, como alguma coisa que se contrapunha essencialmente às máquinas e às próteses que simulam as funções biológicas. A essência do humano parecia residir ali justamente onde robô falhava e mostrava seus limites. Mas com a evolução da robótica, o autômato cada vez mais "parece" com a nossa espécie, o que força-nos a uma contínua redefinição de nossa humanidade. Agora temos a inserção de elementos eletrônicos dentro de nosso próprio corpo, elementos esses que passam a fazer parte daquilo que chamamos de nós. Fazer deste corpo tecnologizado um nó desta grande teia a serviço da educação é o objetivo desta pesquisa que se inicia, pois acredito que a integração das pesquisas de Damásio, Maturana e Varella aliadas ao saber coletivo de Lévy e ao impacto dos trabahos de Stelarc, abre uma série de perspectiva para a criação de novas formas educacionais. A Educação, cada vez mais, abre-se para o contato com uma verdadeira transformação no processo pedagógico, diante de um mundo cada vez mais "conectado" a universos significantes repletos de subjetividade, sensibilidade e imaginário.

Para aqueles que entendem esta pesquisa como uma mudança radical, cito Lévy, para quem "a verdadeira mudança radical não está na revelação de um mundo, possibilitado pela multimídia, hipermídia, hipertexto, mas sim na revelação de um mundo diverso".

As tecnologias oferecem a possibilidade de se conectar o corpo para o diálogo com o computador. As interfaces permitem o acesso às informações que quando processadas geram transformações em tempo real, ou no tempo mesmo em que estamos agindo e em que recebemos respostas do sistema. Nestas trocas, energias são mobilizadas entre o participante da experiência e o tipo de situação que lhe é proposta.

Mas se hoje essa dialeticidade entre sujeito e objeto vem sendo, cada vez de forma mais significativa, bastante defendida nos domínios da educação, o reconhecimento do corpo como fundamental no processo de conhecimento é ainda uma necessidade do campo pedagógico. Ao se incorporar esse paradigma no universo educacional, abre-se caminhos jamais perpassados pelos métodos de aprendizagem tradicionais, dado que a aceitação dessa perspectiva obriga, necessariamente, à reformulação não apenas dos papéis dos sujeitos da prática pedagógica, como também das concepções de mente e corpo.

Trata-se de um novo paradigma de subjetivação e de cognição ainda em gestação (podendo ou não vingar), permitindo que corpos tecnologizados sejam colocados a serviço de uma nova educação. Nesse sentido, como afirma Pretto (1996), "não basta, portanto, introduzir na escola o vídeo, televisão, computador ou mesmo todos os recursos multimediáticos para se fazer uma nova educação. É necessário repensá-las em outros termos porque é evidente que a educação numa sociedade dos mass media, da comunicação generalizada, não pode prescindir da presença desses novos recursos. Porém, essa presença, por si só, não garante essa nova escola, essa nova educação".

 

BIBLIOGRAFIA

BOHADANA, E. Linguagem Digital e Educação. Texto Da 23 Amped -GT 16 Educação e Comunicação – 2000.

DAMÁSIO, A. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

____________. O Mistério da Consciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

LÉVY, P. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 1998.

MATURANA, H., VARELA, F. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. São Paulo: PSY, 1995.

PRETTO, N. Uma escola sem/com futuro. São Paulo: Papirus, 1996.

 

 

 

 

 

 

 

FOTO 1

 

 

 

 

 

 

O homúnculo do Teatro cartesiano, segundo uma concepção apresentada
por Stephen Jones em "Introduction to the Physiology of Ordinary
Consciousness". Conference : "Towards a Science of Consciousness" ,
Tucson, Arizona, Abril,1996.

 

 

FOTO 2

FOTO 3

 

 

STELARC prega que o importante, além da liberdade de idéias, é a liberdade de forma - o que para ele é a liberdade para modificar o corpo.

 
 
 
 
 
 
 

 

 

 

 

Esquema Visual do Pôster

Educação com o Corpo Tecnologizado