A REEDUCAÇÃO DA LINGUAGEM FORMAL NAS LINGUAGENS DE TRÂNSITO DO CAMPO SEMÂNTICO-ESCOLA

Maria Suzett Biembengut Santade (UNIMEP)

Introdução

Observando os textos das crianças do Ensino Fundamental, principalmente os da 5ª série, notamos uma escrita fonográfica a qual espelha a proximidade da escrita com a fala tão eloqüente das crianças, apresentando os seus achismos, os seus euísmos, ou simplesmente, os seus conteúdos rotineiros com opiniões bastante fortes semanticamente. Porém, o que nos chama mais atenção é o traço forte da oralidade com seqüelas fonéticas de toda ordem ou simplesmente a normalidade da fala não adaptada às convenções da escrita. Dessa forma, tais textos tornaram-se pretextos para nossas aulas no Ensino Superior dos Cursos de Letras, Ciências e Pedagogia. E as perguntas feitas foram: como melhorar o Ensino do Português para crianças que não têm o amparo da escrita através do hábito da leitura? Somente instigá-las à leitura em sala de aula? Ora, tudo que nos circunda no nosso cotidiano vem da escrita e como eliminar as variações das falas registradas nos textos escritos pelos alunos?

Não se pode esquecer de que a escrita é um filtro lingüístico com suas convenções ortográficas, morfossintáticas. E mesmo com toda a liberdade semântica que se pode trabalhar em redações das mais diferentes modalidades, há que se respeitarem as regras estabelecidas pelo sistema gramatical. Todo indivíduo tem a gramaticalidade interna absorvida por uma macro-gramática passada de geração a geração. Em cada frase de um indivíduo há um feixe de normas morfossintáticas e o uso da normalidade fonológica. Os significados múltiplos das palavras carregam o rastro cultural de cada usuário, apresentando suas diferenças socioculturais, socioeconômicas, etc.. Porém, isso não quer dizer que somente vivemos sistematizados por regras. Essas regras estabelecidas em todo o nosso comportamento social, agrupam-nos como iguais diferentes na sociedade.

A gramática sendo ensinada somente como regras prontas, fora do contexto, poderia ser simplesmente decorada como um código de obediência sem nenhuma atração lingüística. E é esse ensino tradicional feito sobre a gramática que rebatemos e questionamos. Sendo

assim, em sala de aula fomos raciocinando sobre as técnicas gramaticais em cima dos contextos elaborados pelas crianças da escola pública. Com todas as discussões feitas neste século XX, ainda encontramos educadores legitimando as regras gramaticais de forma silenciosa e soberba na escola popular sem ao menos manterem um diálogo de mediação na procura do melhor caminho do ensino da língua. Ou muitas vezes seguem o caminho mais fácil de não ensinarem mais nada, deixando o aluno sem horizonte a registrar seus escritos desestruturados numa redação dialetal fora dos parâmetros ortográficos oficiais. De um lado, educadores-bancários como diz Freire, e de outro, aqueles que não se contextualizam como sujeitos interagidos no cotidiano da vida escolar.

Pensamos numa gramática visual, uma gramática cheirando povo, ou pelo menos próxima a ele para podermos entender o seu jeitão de oralizar seu pensamento e o seu registro escrito tão cheio de criatividade, de valores pessoais, de sofrimento... Passamos a apresentar como a fala é produzida, seus fonemas articulados, suas variações fonéticas, dentro das modalidades de prestígio e dialetal. Começamos a desenhar o aparelho fonador e ampliando a cavidade bucal e colocando todos os fonemas nessa boca e lá através de uma magia, fomos falando da dança dos fonemas dentro dela. No processo de articulação, cada educando foi descobrindo os seus porquês da boa ou da péssima pronúncia, e até descobrindo a olhar melhor a cavidade bucal. Cada aluno passou a apalpar sua boca, a sentir toda a musculatura, sua salivação, sua respiração, seus movimentos. É através desse instrumento que passamos a transmitir a maioria de nosso pensamento.

Brincando com a boca e os fonemas

Sentimos em nossas pesquisas que não há uma gramática que se dedique a mostrar o funcionamento da linguagem segundo o aspecto funcional da fala. As gramáticas dedicam-se muito pouco à Fonologia e Fonética e quando há uma explicação sobre a fala, simplesmente abordam o aparelho fonador e em seguida já descrevem os fonemas segundo seu funcionamento na palavra e classificação dos mesmos de forma bastante descritiva, a sílaba quanto à sua tonicidade e à sua divisão e dentro dela os encontros vocálicos, os encontros consonantais, os dígrafos, uma explicação rápida sobre prosódia e ortoépia.

Não há uma gramática fazendo um paralelo entre linguagem de prestígio, a modalidade padrão-culta, em relação à linguagem dialetal a qual tem seu percurso em âmbito nacional caminhando paralelamente à de prestígio. Como comenta Paulo Freire no livro Alfabetização: leitura do mundo leitura da palavra (1994:35):

"... há o tipo de linguagem falado pela classe dominante e outros tipos falados pelos operários, camponeses e grupos semelhantes. Essas são parte da idéia abstrata que chamamos português do Brasil. Isto não é língua como abstração, mas língua como sistema concreto falado por diversos grupos. Por isso, é importante compreender essas diferentes variedades de linguagem. Elas implicam gramáticas diversas e representações sintáticas e semânticas diversas, condicionadas e explicadas pelas pessoas em posições diferenciadas em relação às forças de produção."

Nossa preocupação é sempre adentrarmos pedindo licença à Gramática Normativa e apresentarmos a variabilidade e invariabilidade da Língua, buscando exemplos da linguagem natural dos alunos. Nessa aproximação entre as normas e as produções do povo, passamos a dinamizar em nossas práticas a Gramaticalidade Chão.

Assim, foi-se criando um "desaprisionamento" (Novaski, 1996) nos alunos que passam a contar sobre suas produções, seus prováveis "erros" fonéticos, suas dificuldades em aprender a norma. Nessa busca de desenharmos, usando nossas expressões dramatizadas em sala, passamos a tornar a aula como se fosse uma encenação num teatro. Na busca da compreensão, utilizamos os desenhos, os gestos para articularmos os fonemas segundo o padrão e divertimo-nos quando mostramos a "preguiça popular" em articular bem os fonemas.

Os alunos vão sentindo que a fala é um grande "fonemão", é um processo "psicofísico", uma corrente de energia. Aliás, não só utilizamos os orgãos passivos e ativos para processarmos a fala, mas o corpo inteiro que é um orgão-falante completo que transmite o pensamento que espelha a cultura de cada um.

Passamos a mostrar aos alunos que a palavra é mole, que cada fonema tem seu espaço e quando agregados uns aos outros dentro da sílaba, há também a separação de valores neles (até dentro da sílaba há os fonemas e/ou sílabas dominadores e os dominados). E mais ainda, dentro da palavra há a sílaba-rainha (tônica) que sustenta a "alma" da palavra, a energia semântica dela e há as outras sílabas-operárias que também seguem uma classificação de escala (átona inicial, átona pré-tônica, átona final...). Nesse diminuendo e crescendo silábico, os alunos passam a observar a música da palavra, "a melodia" que se escorrega em outras palavras, havendo uma atração entre elas, ou seja, uma verdadeira "fusão fonética". Somente as sílabas-pico (tônicas) são produzidas e o povo é sábio em entender o significado do enunciado, havendo compreensão perfeita da linguagem. Percebemos isso no enunciado abaixo:

"Ó komokotô!"

"Olha como eu estou"

Fazendo uma análise na cavidade bucal, seguindo as produções dos fonemas do enunciado acima, notamos a economia fonética feita exatamente nas sílabas-operárias e priorizando as sílabas-rainhas, sem tampouco haver perda da compreensão do significado de todas as palavras. Percebemos um grande "fonemão" em estado orgástico. Aqui que discursamos sobre o analfabeto na magia de produção sem reconhecer os signos da escrita. Vejamos em análise fonética o enunciado abaixo:

"Olha como eu estou".

/‘ ó l a ‘komu ew is‘tow/

[‘ ó Æ Æ ‘komo[ko] Æ ‘to]

apagamento inserção apagamento

silábico de uma silábico

nova

sílaba

Fazendo uma análise do funcionamento dos fonemas articulados, respeitando cada elemento fonético na linguagem culta em relação à dialetal, sentimos o apagamento das sílabas átonas e uma juntura de uma sílaba átona com a palavra monossilábica tônica "eu" / mu ew / > [ mo ]. O interessante é a inserção de uma nova sílaba nessa economia lingüística, prevalecendo a compreensão e a música do enunciado [ ko ] pela segunda vez. Podemos dizer que houve um espraiamento, ou então, um escorregamento dos fonemas na produção.

Nessa análise podemos perceber que a linguagem popular arrasta o canto de cada palavra na sílaba-pico (tônica) e quando o povo tem o aprendizado culto da língua, ele resgata-a de forma mais cuidada. Porém, quando desconhece a linguagem de prestígio, vai produzindo a Língua da forma como a aprendeu sem ao menos reconhecer nele um sujeito discriminado muitas vezes pela própria linguagem. É aqui que faço um paralelo entre a forma padronizada da língua e a linguagem dialetal, dizendo aos educandos o quanto a língua mal cuidada acaba desmerecendo socialmente o sujeito-falante na sociedade. Aquele que é discriminado pela linguagem muitas vezes nem sabe que o é. Sabemos que a linguagem torna-se a vestimenta na escala social do usuário da Língua, que através da sua "competência lingüística" (Chomsky,1965), mostra-se participativo naquilo que deve saber para integrar-se a determinados grupos em diferentes escalas sociais.

Dessa forma, preocupamo-nos em apresentar os orgãos reprodutores da fala, sua anatomia, todo o movimento de seus músculos, toda a expressão que representamos no processo da comunicação. Depois colocamos os fonemas na cavidade bucal e vamos mostrando através de transcrições fonéticas a produção de cada sílaba, sílabas em palavras, palavras em enunciados e todos os fenômenos fonéticos que acontecem pela atração dos fonemas em nossa articulação.

No Ensino Fundamental usamos desenhos básicos para o exercício da boa pronúncia segundo a linguagem de prestígio, tentando sempre cultuar nas crianças tal linguagem para que possam tomar gosto pela leitura. Na verdade, a nossa intenção sempre é ensinar as crianças a lerem, pois sabemos que é através da leitura que elas descobrem o mundo. Não se ensina a ler através de um processo linear e descontextualizado da vivência do sujeito-usuário. Cada um tem seu universo cultural e revela-se aos poucos falando, escrevendo e lendo. Nessa tríade lingüística as crianças descobrem-se lendo, e lendo descobre o mundo da linguagem. Através dela, alfabetizam-se num contínuo de reconstrução indivíduo-social, emancipando-se das amarras da classe dominadora que lhe quer como incapaz nos trajetos discursivos. Assim, através da alfabetização contextual, as crianças estão livres para descobrirem o mundo sem perder de vista a Língua como código nacional pertencente a todos os cidadãos. Estes são protagonistas na construção contínua dos processos sociais. Assim diz Freire (1994:106):

"A alfabetização só pode ser emancipadora e crítica na medida em que seja realizada na língua do povo. É por meio da língua nativa que os alunos ‘nomeiam o próprio mundo’ e começam a estabelecer uma relação dialética com a classe dominante no processo de transformação das estruturas sociais e políticas que os confinam em sua ‘cultura do silêncio’. Assim, uma pessoa é alfabetizada na medida em que seja capaz de usar a língua para a reconstrução social e política."

No Ensino Superior usamos os desenhos para que os graduandos entendam o processo de fala e sua variabilidade. Desse forma como profissionais, compreenderão os fenômenos fonéticos que ocorrem na fala e na escrita fonográfica das crianças. Através do conhecimento da fala, poderão melhorar a oralidade e a escrita das crianças, pois tanto a linguagem oral como a linguagem escrita têm seus percursos distintos. Através desse elo entre a oralidade e escrita, haverá um exercício mais producente na leitura. Nela as crianças descobrem as palavras que têm suas múltiplas significações e usos na linguagem. E as mesmas palavras usadas por elas tranvestem-se de conceitos novos em seus contextos, ampliando sua visão de mundo e de suas contradições sociais. A magia da fala e seus fenômenos encantam a nossa própria vida como sujeitos no processo histórico.

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